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13 de agosto de 2019

Vik Muniz na Arte Sacra






A história da arte é a história da luta de todas 
as representações óticas, dos espaços inventados 
e das figurações. É a história da luta das imagens. 

–– Carl Einstein (1885-1940).    



São fotografias. Mas um olhar atento descobre logo, nos detalhes, materiais surpreendentes que compõem em pequenas partes cada uma das imagens. Tinta, açúcar, molho de tomate, chocolate, geleia, algodão, botões, fragmentos de plástico, pedras, madeira, folhas e caules de plantas, terra, metal, tiras e remendos de anúncios de publicidade, pedaços de folhetos coloridos, de revistas, de jornais, de fitas, de embalagens para presentes e de outros recortes de papel formam as novas obras que Vik Muniz montou para criar ilusões de ótica e depois fotografou. Batizada de “Imaginária”, a série, que reúne imponentes fotografias, 20 no total, ampliadas com dois metros de altura e emolduradas, como os modelos solenes das pinturas originais de santos católicos a que fazem referência, foi apresentada em destaque no festival de fotografia Rencontres d’Arles (veja o link no final deste artigo), realizado a cada ano entre julho e setembro na cidade de Arles, às margens do mar Mediterrâneo, no sul da França.

Criado em 1970, o festival se mantém como um dos grandes eventos internacionais de fotografia e reúne dezenas de mostras que vão dos acervos históricos até as novas tendências, os experimentos recentes em novas tecnologias de câmeras e painéis de atualidades sobre fotojornalismo. As imagens de Vik Muniz frequentaram o festival nas últimas duas décadas como amostragens temáticas e em séries inéditas – como esta “Imaginária”, que pela primeira vez é exibida na Europa. Em entrevistas e no dossiê de imprensa distribuídos pela organização do festival, ele explica que a intenção foi homenagear grandes artistas que criaram imagens que há séculos fazem parte do imaginário coletivo, mas artigos na imprensa internacional destacam que a nova série, colorida e fulgurante, não esconde um melancólico tom de “réquiem”, de celebração fúnebre, em relação direta com a violência e as ações de destruição em vários níveis provocadas pelo governo de extrema-direita e de orientação fascista que em 2019 tomou o poder no Brasil.






Vik Muniz na Arte Sacra: no alto, retrato
do artista por Carolyn Cole. Acima e abaixo,
as releituras para imagens sagradas dos
santos católicos segundo Vik Muniz: acima,
Santo Agostinho (após Philippe de Champaigne).
Abaixo, Crucificação (após Thomas Eakins) e
Imaculada Conceição ou Nossa Senhora
da Conceição, a pintura original de 1768
do mestre italiano Giovanni Battista Tiepolo
e a recriação feita por Vik Muniz com materiais
nada convencionais. Todas as imagens fazem
parte do dossiê de imprensa do festival
internacional de fotografia Rencontres d’Arles












O simulacro da cópia e o peso da tradição



Diante das novas experiências de Vik Muniz com sua “Imaginária”, também são inevitáveis as referências sobre questões como o valor de culto e o valor de exposição, as interfaces entre o original e suas cópias, assim como as aproximações e as relações milenares entre a religião e a história da arte, entre o sagrado e o profano. Ao reconstruir formas e imagens tradicionais de obras de arte a partir de simulacros imprevistos, o artista provoca uma mistura por certo iconoclasta, mas que permite também interpretações extremas, em variações pontuadas tanto por veneração como por toques generosos de ousadia e ironia, diante do peso da tradição. Ao tomar como modelo figuras de devoção, perenes em seu significado e sua originalidade, as réplicas de Vik Muniz questionam a representação da obra de arte e o fascínio que o mistério da fé exerce, há séculos, sobre os grandes artistas.

A criação artística sempre teve fascinação pelo mistério da fé”, argumenta Vik Muniz em um breve depoimento reproduzido no dossiê de imprensa distribuído pela organização do festival. “A arte mistura elementos fundamentais que vêm da crença e das experiências coletivas e individuais para promover um consenso sobre a realidade, seja ela presentificada ou apenas imaginada. Com a obra de arte, a verossimilhança não é mais que uma ilusão. Escrever não é descrever, pintar não é evocar, mesmo se constatamos que grande parte do que admiramos na história da arte está, objetivamente, relacionada à arte sacra”, conclui. Segundo a descrição apresentada pelos organizadores da exposição, a nova série de Vik Muniz explora, incansavelmente, as possibilidades da fotografia e as mais variadas possibilidades da arte que buscam uma tradução para o indizível.








Vik Muniz na Arte Sacra: acima,
as releituras para as imagens clássicas
de Santa Inês (após Simon Vouet) e
São Benedito (após Jose Montes de Oca).

Abaixo, as releituras de Maria Madalena
(após Giovanni Girolamo Savoldo)
e São João Batista no Deserto
(após Caravaggio)









Realidade e representação: enganar o olho



O indizível, no caso da série “Imaginária”, provoca um olhar que nunca é neutro nem desinteressado. Diante das imagens que o artista Vik Muniz selecionou e “montou” com a intenção de construir uma ilusão de ótica, provocando uma semelhança inegável e irrecusável com um modelo religioso pré-existente, há uma quase obrigatória curiosidade que enlaça a experiência da percepção à identificação dos detalhes. Identificado pelo olhar mais atento, cada detalhe interroga o pensamento e leva o observador a considerar tanto o modelo original como a cópia que no momento se apresenta e a pensar, talvez, na origem da própria representação, na remota pré-história da arte, no sentido que ela evoca e no que ela desencadeia sobre o que seja falso ou verdadeiro.

A partir da brutalidade apenas aparente dos materiais utilizados, os pequenos fragmentos foram reunidos para “enganar o olho” e formar a imagem. Ao final do processo de montagem, o artista registrou tudo em fotografias – porque a arte, neste caso específico, também é a arte da fotografia. Conhecidas desde a Antiguidade Clássica pelos mestres da arquitetura e da pintura, as técnicas de “trompe l’oeil” (em francês, “enganar o olho”) não surgem como novidade nas obras de Vik Muniz. Na verdade, são estratégias presentes na maioria de sua produção, seja em recriações de obras muito conhecidas, seja em retratos de celebridades ou em recomposições de mosaicos sobrepostos e fotografados.
 
As estratégias de Vik Muniz, para o olhar do observador mais atento, trazem pontos de semelhança com a arte do holandês M. C. Escher (1898-1972), mestre incomparável na criação das ilusões de ótica em padrões geométricos, mas também remetem às montagens e colagens criadas pelos primeiros mestres do cubismo, Pablo Picasso e Georges Braque, além de outros artistas das vanguardas na arte moderna, desde o começo do século 20. A partir da década de 1960, estas mesmas estratégias de composição e de justaposição tornaram-se uma constante na Pop Art de nomes como Andy Warhol, Jasper Johns, Peter Blake, Robert Rauschenberg, Tom Wesselmann, Claes Oldenburg e Roy Lichtenstein, ou de brasileiros como Nelson Leirner, Athos Bulcão, Hélio Oiticica, Lygia Clark e Regina Silveira, entre outros.











Vik Muniz na Arte Sacra: acima, a releitura
para São Tiago, o Maior (após Guido Reni)
e Nossa Senhora de Guadalupe (imagem
da tradição religiosa do México).

Abaixo, São Pedro (após Girolamo Batoni)
e Santa Luzia (imagem da tradição da Itália)








Apagando as diferenças



A principal novidade das práticas de Vik Muniz, em especial nesta “Imaginária”, talvez esteja na “remediação”, ou no uso de novas mídias e tecnologias para reconstituir ou reconfigurar, reinventando ou apagando a diferença entre novas formas de expressão e formas cristalizadas em aparatos tradicionais. A palavra “remediação” (do latim “remedere”, curar, restaurar) foi apresentada na década de 1960 por Marshall McLuhan para identificar uma inter-relação entre os meios de comunicação e para afirmar que o conteúdo de uma mídia é, sempre, uma retomada de conteúdos de outra mídia.
 
Mais recentemente, o mesmo conceito de "remediação" retornou às discussões teóricas sobre meios de comunicação, história da arte e literatura como um neologismo proposto por Jay Bolter e Richard Grusin (no livro “Remediation: Understanding New Media”, publicado no ano 2000 por The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, USA). No contexto das teorias da literatura e da comunicação, Bolter e Grusin lançaram o neologismo para refletir sobre novas versões baseadas nos escritos de ficção científica e horror de Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), com foco nos diferentes tipos de mídias: eletrônicas, impressas, digitais.

Remediação é um processo que ocorre quando um meio (de representação, de comunicação) passa a imitar ou incorporar elementos de outros meios, ou de outras mídias. Como processo, tem aproximações ou similaridades com as estratégias de citação, de paródia, de paráfrase e de intertextualidade, mas o que está em destaque é a transposição da obra original. Segundo Bolter e Grusin, a internet, por sua própria natureza, "remedia" todos os meios, fazendo a transposição de outras mídias que na origem estiveram veiculadas em jornais, nas revistas, na TV, no rádio, no livro, nas obras de arte e em todas as demais formas e tipos de linguagem e comunicação.

O termo remediação, portanto, tem equivalências diretas com as estratégias usadas por Vik Muniz na medida em que uma mídia “toma emprestado” de outra mídia 
as questões de forma e conteúdo para constituir, remediar, ou "fazer de novo", uma adaptação ou transposição. As estratégias nesta Imaginária evidenciam, também, relações com pressupostos específicos da história da arte, tais como o valor de culto e o valor de exposição, em suas referências diretas às relações fluidas e instáveis, quase sempre cambiantes, entre categorias conceituais de “cultura de massa”, “cultura popular e “cultura erudita”.








Vik Muniz na Arte Sacra: acima, a releitura
para São Sebastião (após José de Ribera) e
Santa Rita de Cássia (imagem da tradição).
Abaixo, a releitura para Santo Antônio de Pádua
(após Tanzio da Varallo) e Santa Terezinha
(segundo imagem da tradição). No final da página,
releituras de Vik Muniz para São Miguel Arcanjo
(após Darko Topalski) e para São Jorge e
o Dragão (após Gustave Moreau)








No contraste ou na fusão da riqueza das cores e das formas, situando em uma mesma obra elementos da expressão labiríntica e fragmentária pela escultura, pelo desenho, pela pintura, pela fotografia (que, ao final, sintetiza uma remontagem de todo o processo), Vik Muniz reúne e apresenta, em um mesmo plano, vários discursos simbólicos ou várias dimensões sobrepostas para engendrar a ilusão de uma só forma, um só objeto. A diversidade de materiais e de técnicas constrói uma unidade e se transforma em uma só imagem, que por sua vez reproduz, por analogia ou semelhança, uma imagem anterior muito conhecida.

O paradoxo de atrelar o mosaico e o múltiplo, o plural, a complexidade, à construção de uma só imagem, estabelece ainda um alerta importante para o observador, porque transforma a percepção da realidade e a percepção sobre a representação em coisas semelhantes e visualmente equivalentes. Observar com atenção a metamorfose dos detalhes reunidos pelo artista, que se fundem para constituir a ilusão de uma forma conjunta, torna-se também uma questão ideológica, porque denuncia que não há mais lugar para o olhar ingênuo e que o sentido da visão não pode ser separado da interpretação.



por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Vik Muniz na Arte Sacra. In: Blog Semióticas, 13 de agosto de 2019. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2019/08/vik-muniz-na-arte-sacra.html (acessado em .../.../...).



Para uma visita virtual às exposições do Rencontres d'Arles,  clique aqui.
























23 de março de 2016

Sagrado e Profano em Chagall





A Bíblia é um drama mundano o mundo é uma parábola religiosa. 
 
––  Marc Chagall (1887-1985).   
...........

Arte e Religião sempre estiveram muito próximas – desde o mais remoto da experiência humana. É desta constatação que parte Walter Benjamin em seu ensaio fundamental “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, publicado pela primeira vez em 1936, para destacar que as mais antigas obras de arte surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois religioso. Benjamin, passo a passo com importantes historiadores e filósofos dos últimos séculos, aponta que as relações entre Arte e Religião conduziram a vida em sociedade em uma simbiose por vezes implacável, fortalecida em momentos capitais como o Renascimento e, posteriormente, com o Barroco.

Arte e Religião também se fundem nas obras-primas de alguns dos grandes artistas no último século – com um florescimento dos mais especiais na obra de Marc Chagall, um dos artistas incomparáveis do século 20. Considerado por muitos o maior de todos os mestres da cor na Arte Moderna, pintor, ceramista, gravurista, artista gráfico, desenhista e com uma trajetória que sempre buscou novos suportes e formatos para a arte, Chagall está recebendo uma grande celebração na Espanha com a abertura de uma mostra retrospectiva inédita sobre sua extensa obra com temática de inspiração religiosa.

Intitulada “Chagall. Divino y Humano”, a exposição está aberta ao público na Fundação Canal (veja link para uma visita virtual no final deste artigo), em Madri, reunindo mais de uma centena de obras originais em técnicas de litografia, xilogravura e gravura, incluindo obras sobre papel, criadas entre as décadas de 1940 e 1980. Com curadoria a cargo de Ann-Katrin Hann, conservadora chefe do museu Pablo Picasso de Münster, que tem sede na Alemanha e de onde vêm muitas das obras reunidas na exposição, “Chagall. Divino y Humano” lança luzes sobre esta que talvez seja a parte mais evidente e também menos estudada sobre o grande mestre da cor.







Sagrado e Profano em Chagall:
no alto, o artista no ateliê em Paris, em
1955, em frente a Le roi David, pintura
em óleo sobre tela de 1952. Acima, em
família, com a esposa, Bella Rosenfeld,
e a filha, Ida, fotografados em 1933,
em Paris, por André Kertész.

Abaixo, uma amostras das primeiras
obras de Chagall produzidas sob
influência das vanguardas, em 1911,
que foram batizadas por seu amigo
Blaise Cendrars: Moi et le Village
(Eu e a Vila) e Le soldat boit
(O soldado bebe). Também abaixo,
duas das primeiras obras-primas de
Chagall com temática de inspiração
religiosa, Tentation (Adam et Eve)
e Calvaire, pinturas em óleo
sobre tela de 1912


 












Judeu da Bielorrússia



Sempre lembrado e homenageado por sua pintura de formas alegóricas e multicoloridas em óleo sobre tela, Marc Chagall também merece lugar de destaque entre os principais artistas gráficos do século 20 – como comprova o recorte temático sobre suas obras-primas de inspiração religiosa reunidas em Madri. Com frequência rotulado como “surrealista”, por conta de sua obra difícil de classificar, só comparável a outros grandes mestres e pontuada de referências oníricas, Chagall nasceu em Vitebsk, nordeste da Bielorrússia, no antigo Império da Rússia, em uma família de fortes tradições judaicas – detalhe biográfico que ilumina a interface religiosa tão presente em sua obra.

Na juventude, uma década antes da Revolução Russa de 1917, Marc Chagall era um aluno dedicado e promissor da tradicional Academia de Arte de São Petersburgo quando uma bolsa de estudos para duas semanas em Paris mudou radicalmente o destino. Na capital da França, depois de entrar em contato com os artistas e escritores das vanguardas, Chagall decidiu não retornar à Rússia no prazo previsto. Encantado com as experiências radicais dos movimentos modernistas e com a vida boêmia de Montmartre, permaneceu por anos em Paris, onde tornou-se amigo de nomes como Picasso, Kandinsky, Cendrars, Modigliani e, especialmente, Guillaume Apollinaire.








Sagrado e Profano em Chagall:
beijos e casais em cenas amorosas
segundo a arte do mestre da cor
nas pinturas em óleo sobre tela de
sua primeira fase, produzidas antes
da Primeira Guerra Mundial – acima,
Les amoureux, de 1913, e Les
amants en bleus, de 1914.
Abaixo, Aniversaire, de 1915,
Amateurs en Rouge (1916)









Nesta época surgem suas primeiras obras produzidas sob a inspiração dos novos amigos de vanguarda – três pinturas em óleo sobre tela de 1911 que foram batizadas por Blaise Cendrars: “Moi et le Village” (Eu e a Vila), “Le soldat boit” (O soldado bebe) e “La Pluie” (A Chuva). Depois de Cendrars, foi Appollinaire quem assumiu o papel de mentor do jovem Chagall, sendo o primeiro a destacar o talento do estreante entre os grandes da Arte Moderna – e também foi Appollinaire quem selecionou obras do jovem quase desconhecido para uma importante mostra das vanguardas em Berlim, em 1914, pouco antes da explosão da Primeira Guerra Mundial. A guerra na Europa forçou o retorno de Chagall a seu país, onde ele se casaria com Bella Rosenfeld, que conheceu quando ainda era adolescente em sua aldeia.



Comissário para as Belas Artes



Bella, segundo os biógrafos, foi o grande amor de Chagall e sua inspiração da vida inteira. Com a Primeira Guerra mudando rapidamente o cenário da Europa, vem a Revolução de 1917 na Rússia e novos desafios para Chagall, que foi nomeado comissário do povo para as Belas Artes em sua cidade natal Vitebsk. Empossado no cargo oficial, Chagall teve a iniciativa de inaugurar a primeira escola de Arte Moderna na Rússia – com a meta de que ela estivesse aberta à variedade das tendências modernistas que conheceu em sua temporada na França. Porém, desentendimentos com outro gigante das vanguardas, Kasimir Malevich, levaram Chagall a desistir do cargo e a voltar em definitivo para Paris.









        




Sagrado e Profano em Chagall:
acima, os amigos Pablo Picasso e
Marc Chagall em 1955, em St. Paul
de Vence, França, fotografados
por Philippe Halsman; e Chagall
no ateliê em Paris, em 1934, em
fotografia feita no processo de
autochrome por Roger Violett.

Abaixo, uma pintura em óleo sobre
tela de 1938 com tema bíblico,
La crucifixion blanche (A crucificação
branca), e La résurrection, aquarela
sobre papel de 1948. Também abaixo,
uma seleção de três imagens da
série de gravuras produzidas sob
encomenda para ilustrar edições da
Bíblia Sagrada apresentadas na
exposição em Madri: Moisés e a
Serpente (1956); Moisés e as
Tábuas Sagradas (1952);
A Crucificação (1952)



















O trabalho fantástico e colorido de Chagall, que talvez somente encontre paralelos em alguns poucos de seus contemporâneos – especialmente no espanhol Pablo Picasso, no francês Henri Matisse e em outro russo, Vassily Kandinsky – avançou para outras técnicas, outros suportes, depois de suas primeiras experiências com pintura em óleo sobre tela nos movimentos de vanguarda do início do século passado. A partir da década de 1920, passaria também a incluir em seu trabalho as ilustrações, desenhos e gravuras produzidos sob encomenda para reprodução em livros e revistas.

Nesta dedicação às ilustrações e artes gráficas sob encomenda, a Bíblia Sagrada iria ocupar um lugar de destaque. De 1931 a 1939, Chagall criou 66 gravuras sobre temas bíblicos, encomendadas pelo comerciante de arte e editor francês Ambroise Vollard – mas o trabalho foi interrompido quando explodiu a Segunda Guerra Mundial. Com a tomada da França pelas tropas nazistas de Adolf Hitler, Chagall parte em 1942 para o exílio nos Estados Unidos. Desde a década de 1930, com a perseguição aos judeus pelo Nazismo, sua obra já havia incorporado a questão política em tons sombrios: judeu convicto, Chagall começou a denunciar com sua arte as tensões e depressões sociais e religiosas que sentia na pele. Assim que a guerra foi deflagrada, em 1939, o regime Nazista classificou oficialmente as obras de Chagall como arte degenerada.







Sagrado e Profano em Chagall:
gravuras apresentadas na mostra
sobre Chagall em Madri – acima,
a cena dos namorados românticos
em Les Amoureux de la Tour Eiffel
(Amantes da Torre Eiffel, de 1960),
em que o monumento de Paris vem
substituir a cruz em cena que remete
ao sofrimento após a Crucificação.

Abaixo, Paysage bleu (Paisagem azul,
1958), referência direta a Maria que tem
nos braços Jesus Cristo, na tradicional
cena da “Pietá”; La descente de croix
(O descimento da cruz), a Paixão de
Cristo na versão surrealista, em pintura
de 1976; e a alegoria representada com
os Três Reis Magos que assumem
feições de animais em
Les trois acrobates (1957)












Folclore, sonhos, fragmentos do real



De volta a Paris, depois da Segunda Guerra, Marc Chagall concluiu a série sobre a Bíblia que soma 105 trabalhos incomuns, sempre com animais e figuras circenses, festivas, mais humanistas do que exatamente “religiosas”. Da série sobre a Bíblia, 20 figuras estão na exposição em Madri – entre elas “Moisés e a Serpente” (1956), “Da Criação do Homem” (1958) e A Crucificação” (1952). Das centenas de ilustrações e artes gráficas produzidas sob encomenda por Chagall, também estão reunidas na mostra gravuras de várias edições sobre as Fábulas de La Fontaine e 15 das 96 ilustrações em preto e branco da série “Les Âmes Mortes”, criada para ilustrar o romance “Almas Mortas”, de Nikolai Gogol, publicado pela primeira vez em 1848 e considerado uma das obras mais marcantes da literatura russa do século 19.

Chagall começou a trabalhar nas ilustrações para as cenas e personagens de “Almas Mortas” na década de 1920, mas o projeto foi adiado com a morte do editor Ambroise Vollard e a publicação só se concretizou em 1948, com o lançamento de uma luxuosa edição comemorativa do centenário do livro de Gogol. A edição, com pouco mais de 300 exemplares, que se tornaria uma obra de arte disputada por colecionadores e museus do mundo inteiro, foi patrocinada pela casa editorial Tériade, fundada pelo grego Stratis Eleftheriades. A colaboração entre Chagall e Tériade deu origem a cinco livros ilustrados com litografias e gravuras que são apontados com frequência como marcos das artes gráficas na segunda metade do século 20: são eles, além de “Almas Mortas”, as “Fábulas de La Fontaine” (1952); a “Bíblia Sagrada” (1956); o romance “Dáfnis e Cloé” (1961), do escritor grego Longo, que viveu no século 2 antes de Cristo; e “Circus”, coleção de gravuras, pinturas e desenhos de Chagall sobre a temática do circo, publicado em 1972.    

Outras vertentes de temática com inspiração religiosa na obra extensa de Chagall estão representadas em Madri através de fotografias – caso dos objetos em cerâmica, das tapeçarias, das séries em vitrais, dos mosaicos e dos painéis murais que produziu para catedrais e sinagogas na França (incluindo o design, pinturas e detalhes em relevo do novo teto para a Ópera de Paris, em 1964), nos Estados Unidos e em Israel, sob encomenda para a Universidade Hebraica e o Parlamento de Jerusalém, entre vários outros trabalhos – além dos projetos de cenários, figurinos e adereços que desenvolveu para espetáculos de teatro e balé. O resultado é uma fascinante policromia que une, fora de qualquer contexto racional, fontes folclóricas, citações religiosas, lembranças, cenas oníricas, premonições, fragmentos do real – em abordagens que ainda hoje impressionam.
















.






Sagrado e Profano em Chagall:
a partir do alto, detalhe do teto da
Ópera de Paris, em design, pinturas
e relevos criados em 1964 por Chagall;
o mosaico em técnica mista que representa
Profeta Elias, criado em 1970 e instalado
no Museu Marc Chagall em Nice, França;
e quatro das 96 gravuras de Chagall criadas
sob encomenda para ilustrar um clássico
da literatura russa, o romance de
Nikolai Gogol, Almas Mortas.

Abaixo, La Saint Famille: Maria, o menino
Jesus e José de Nazaré, a Sagrada Família,
em litografia de 1970 de Chagall; Four Seasons
(Quatro estações), mural em cerâmica construído
em mosaico por Chagall em 1972 e instalado na
Chase Tower Plaza, em Chicago (EUA);
seguido de Les amoureux de Vence, de
1957, e a religiosidade traduzida em
duas obras-primas de 1966: Noé et l'Arc en
Ciel (Noé e o Arco-Íris) e Abraham et les
Trois Anges (Abraão e os Três Anjos).
No final da página, imagens da exposição
na Fundação Canal, em Madri, e Chagall
fotografado em janeiro de 1964 por
Lee Lockwood em frente aos vitrais
criados pelo artista para a sede
da ONU em Nova York











Se um artista como Marc Chagall combina tão bem, como poucos, o divino, o mito, as tradições, muitos poderiam esperar que ele fosse alguém muito apegado à religião – mas não era. Chagall sempre declarou que nunca foi um homem religioso nem devoto ou praticante de nenhuma fé específica, e sim muito preocupado com o transcendente em cada experiência vivida e com a liberdade para todas as religiões. Tal distanciamento sobre os dogmas e doutrinas por certo contribui para que a arte personalíssima de Chagall encontre alegorias, analogias e equivalentes visuais que traduzem de forma surpreendente os textos bíblicos em suas metáforas, hipérboles, parábolas.

“O artista verdadeiramente grande busca o universal que está presente em todas as práticas da fé” – assinala uma das frases de Chagall, afixada na abertura da mostra em Madri, que de certo modo contribui para que o observador, seja ele laico ou religioso, possa penetrar na essência do que o imaginário do artista representa em relação a questões do sagrado e também do profano. Em outra frase, também destacada na exposição, Chagall afirma que “a Bíblia é um drama mundano e o mundo uma parábola religiosa”.











O acervo de Chagall apresentado na Fundação Canal, com um ambiente cenográfico que reproduz o interior de uma sinagoga, está dividido em três seções. Na primeira, “Divino e Humano”, obras de diversas séries e fases do artista fundem a profundidade humana de seus autorretratos e a alegria do mundo do circo a cenas religiosas, expressando tanto suas memórias da terra natal quanto referências diretas e indiretas ao Antigo e ao Novo Testamento – tema de tal recorrência e abrangência na arte produzida por Chagall que levou a França a homenageá-lo com a criação do Museu da Mensagem Bíblica de Marc Chagall, instalado desde 1973 na cidade de Nice. Na segunda, “Almas Mortas”, cenas, tramas e personagens do romance de Nikolai Gogol estão representados em um apelo onírico e monocromático que mistura e revela, em matizes de papel envelhecido que vão do negro ao cinza, camponeses, rabinos, estalagens, artistas de circo e vacas que tocam violinos.

Na terceira seção, dedicada às ilustrações criadas sob encomenda de Ambroise Vollard para as edições da Bíblia Sagrada, as referências judaicas e cristãs de Chagall dividem o mesmo espaço pictórico, construindo uma iconografia completamente diferente daquela construída pela tradição do Ocidente deste a Idade Média. Em imagens sempre instigantes e surpreendentes, Chagall traduz versículos sobre passagens, profetas, patriarcas, mas deixa à margem representações mais conhecidas como Adão e Eva, Abel e Caim, Babel, as parábolas de Cristo, entre outras, para destacar aspectos menos reverenciados pelos artistas que o precederam. Não por acaso, um verso extraído de um poema que ele dedicou a sua amada Bella na década de 1920, citado na última seção da exposição em Madri, define à perfeição sua obra de inspiração religiosa, criativa e visionária, tão estranha quanto particular e incomparável: “Como Cristo, estou crucificado, pregado ao cavalete...”


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Sagrado e Profano em Chagall. In: Blog Semióticas, 23 de março de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/03/sagrado-e-profano-em-chagall.html (acessado em .../.../...).


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