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27 de março de 2024

Retratos clandestinos de Helen Levitt

 




A natureza humana é quase inacreditavelmente maleável.
   
– Margaret Mead (1901-1978).  
 

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Durante grande parte dos quase dois séculos da história da fotografia, as mulheres tiveram pouco espaço no trabalho por trás das câmeras, mas com o passar do tempo foram expandindo seus papéis e experimentando cada vez mais os diversos aspectos do aparato fotográfico. Atualmente, qualquer seleção ou recorte sobre a história da fotografia tem, necessariamente, destaque para mulheres que atuaram ou atuam nas variadas frentes dos registros fotográficos no passado ou no presente. Desde os primeiros tempos da imagem fotográfica, a presença feminina no domínio da técnica esteve presente, porém mais como exceção do que como regra, como se comprova nos registros sobre nomes como Constance Talbot (1811-1880), primeira mulher a tirar uma fotografia, ou Ann Cook (1796-1870), primeira fotógrafa a abrir um estúdio de retratos.

Entre as mulheres que atuaram de forma marcante no campo da fotografia no século 19, ou que nasceram no Oitocentos, alcançaram destaque os nomes de Anna Atkins (1799-1871), Julia Margaret Cameron (1815-1879), Shima Ryü (1823-1900), Gertrude Käsebier (1854-1934), Frances Johnston (1864-1952), Alice Austen (1866-1952), Lady Ottoline Morrell (1873-1938), Harriet Chalmers Adams (1875-1937), Imogen Cunningham (1883-1976), Florence Henri (1893-1952), Claude Cahun (1894-1954), Lucia Moholy (1894-1989), Dorothea Lange (1895-1965), Tina Modotti (1896-1942), Germaine Krull (1897-1985), Berenice Abbott (1898-1991) e Ilse Bing (1899-1998), entre outras, sem esquecer aquelas que realizaram trabalhos importantes de forma pioneira na fotografia, mas que permaneceram no anonimato, por preconceito ou porque, por motivos diversos, não tiveram seus nomes registrados pela história oficial.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto, crianças

dançando nas ruas de Nova York, fotografia de 1940.

Acima, mãe e filha (1939) e a família na janela (1940).

Abaixo, Helen Levitt em autorretrato (circa de 1950)

e duas meninas brincando com giz na calçada (1940).

Todas as fotografias reproduzidas nesta página estão

no catálogo da exposição “Helen Levitt: in the street”,

apresentada na Photoghapher’s Gallery de Londres








No Brasil, de acordo com o Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro – Fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910), de Boris Kossoy, publicado pelo Instituto Moreira Salles em 2002, entre centenas de fotógrafos que atuaram naquele período também há algumas mulheres que tiveram um papel pioneiro da maior importância, entre elas Fanny Volk, que atuou no Paraná; Hermina de Carvalho Menna da Costa, em Pernambuco; Leocadia Amoretti e Madame Lavenue, no Rio de Janeiro; Madame Reeckel, no Rio Grande do Sul; Maria Brasilina de Magalhães Faria, no Espírito Santo; Maria Izabel da Rocha, em Sergipe; e Roza Augusta, na Paraíba. Em São Paulo, Gioconda Rizzo (1897-2004), descendente de italianos, foi uma das primeiras mulheres a atuar como fotógrafa e a primeira a abrir um estúdio fotográfico, a Photo Femina, em 1914; e Elvira Pastore (1876-1972), casada com Vicenzo Pastore (1865-1918), ambos italianos, dividia com o marido todo o trabalho no estúdio fotográfico que abriram em São Paulo em 1900.

No século 20, a presença e a importância de mulheres na fotografia têm aumento qualitativo e quantitativo, incluindo a presença inédita de mulheres fazendo a cobertura em cenários de guerra, como Gerda Taro (1910-1937), na Guerra Civil Espanhola, e Margaret Bourke-White (1904-1971), na Segunda Guerra Mundial. Mulheres exerceram o papel de fotógrafas também na vanguarda da arte moderna, desde o começo do século passado, registrando paisagens e temas abstratos, nudez, cenas urbanas, retratos de famosos e de anônimos, muitas delas com premiações importantes e destaque na imprensa, espaços que antes eram restritos quase exclusivamente para os homens.

Entre as mulheres que alcançaram destaque como fotógrafas nos movimentos de vanguarda estão, entre outras, Lisette Model (1901-1983), Lola Alvarez Bravo (1903-1993), Grete Stern (1904-1999), Dora Maar (1907-1997), Lee Miller (1907-1977), Gisèle Freund (1908-2000), Ruth Gruber (1911-2016), Eve Arnold (1912-2012), Maya Deren (1917-1961), Inge Morath (1923-2002) e Sabine Weiss (1924-2021), além de nomes contemporâneos importantes como Rineke Dijkstra, Roni Horn, Mary Ellen Mark, Diane Arbus, Nan Goldin, Annie Griffiths, Cindy Sherman, Annie Leibovitz, Kiki Smith, Carrie Mae Weems, Carol Guzy, Catherine Leroy, Francesca Woodman, Donna Ferrato e Sally Mann. Há também grandes fotógrafas que atuam ou atuaram no Brasil, como Hildegard Rosenthal (nascida na Suíça), Alice Brill (nascida na Alemanha), Claudia Andujar (nascida na Suíça), Maureen Bisilliat (nascida na Inglaterra), Madalena Schwartz (nascida na Hungria), Nair Benedicto, Vania Toledo, Rosa Gauditano, Anna Mariani, Elvira Alegre e mais uma lista extensa que inclui veteranas e nomes das novas gerações.









Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto,

duas crianças na janela, fotografia de 1939.

Acima, crianças brincando na calçada (1940).

Abaixo, a família (1945) e casal improvável (1941)









Uma poesia visual


Nesta legião de fotógrafas, um dos destaques inevitáveis é a norte-americana Helen Levitt (1913-2009), com seu trabalho com a câmera nas ruas que atravessou todo o século 20, atuando em todas as frentes e temáticas da fotografia de arte e do fotojornalismo. Descendente de imigrantes judeus-russos, Helen Levitt nasceu em Nova York – cidade que, com seus personagens, foi cenário da maioria de suas fotografias de 1930 até sua aposentadoria, no final da década de 1990, o que levou Susan Sontag, sua admiradora de longa data, a definir as imagens da fotógrafa como “uma poesia visual sobre Nova York”.

Neste século 21, depois que Helen Levitt morreu, aos 95 anos, em 2009, grandes retrospectivas temáticas sobre sua obra foram organizadas no Festival PhotoEspaña em Madri e também na Fundação Cartier-Bresson em Paris, no Sprengel Museum em Hannover, no Albertina Museum em Viena, no Fotografiemuseum de Amsterdã e no Festival de Fotografia de Arles (no sul da França), entre outras exposições importantes que tiveram as imagens de Levitt como tema. A retrospectiva mais abrangente, que cobre toda a pauta temática de sua trajetória de 70 anos dedicados à fotografia, foi aberta em 2022 na Photographer’s Gallery de Londres, nomeada como “Helen Levitt: in the street”.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto,

as amigas, fotografia de 1941. Acima, os irmãos (1944).

Abaixo, um gato (1945) e retrato de Walker Evans (1940)










De todos os aspectos que sobressaem quando se observa um conjunto de fotografias de Helen Levitt, o lúdico talvez seja o mais marcante – ainda que o grande fotógrafo das questões sociais nos Estados Unidos, Walker Evans (1903-1975), seja reconhecido por ela como sua maior influência. O lúdico e o poético nas imagens de Helen Levitt, contudo, talvez tenha uma relação mais direta com as fotografias humanistas de outros mestres, como os franceses Henri Cartier-Bresson (1908-2004) e Robert Doisneau (1912-1994). O fato de Levitt creditar Walker Evans como sua maior influência vem, por certo, de coincidências biográficas: quando circulavam as primeiras fotografias de Evans mostrando cenas dramáticas e extremamente realistas de agricultores pobres do sul dos Estados Unidos, no período da Grande Depressão, Levitt começava a trabalhar com fotografia, como assistente em um estúdio comercial instalado no Bronx, em Nova York. Evans, naquele período, havia sido contratado pela Farm Security Administration, agência federal criada pelo governo do presidente Franklin Roosevelt, e suas fotografias publicadas por vários jornais e revistas causavam uma grande comoção.

Na mesma época, no começo dos anos 1930, a jovem Helen Levitt participava de vários grupos de ativistas e sindicalistas e um dos principais líderes, Sid Grossman, também fotógrafo e fundador da cooperativa Photo League, pedia a jornalistas e fotógrafos mais atenção aos trabalhadores e aos movimentos sociais como consciência de classe – conforme ela declarou em uma de suas raras entrevistas, à National Public Radio, reproduzida no catálogo da exposição “Helen Levitt: in the street”. “Eu decidi que deveria tirar fotos de pessoas da classe trabalhadora e assim dar minha contribuição verdadeira para apoiar os movimentos sociais que estavam se organizando”, afirmou Levitt. Ela era descrita por seus parceiros de trabalho como uma pessoa extremamente gentil e simpática, mas muito tímida, com poucos amigos, que nunca se casou e morou a vida inteira em Nova York, no mesmo apartamento em Greenwich Village, com curtos intervalos de uma temporada que passou no México, em 1941, e outra em viagem pela Europa, no final da década de 1950, depois que conseguiu uma bolsa de financiamento da Fundação Guggenheim.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: acima,

crianças no Halloween (1940) e fumantes (1940).

Abaixo, o bebê rindo muito no carrinho (1940)

e à procura de um táxi urgentemente (1982)








A temática das ruas


Na retrospectiva que ocupou todos os salões e corredores dos dois andares da Photographer’s Gallery de Londres, centenas de fotografias que Helen Levitt produziu, durante mais de 70 anos, com sua câmera Leica de 35 mm, foram selecionadas em torno de três núcleos temáticos: as ruas, as cenas do metrô e as experiências com os filmes coloridos, nas quais ela foi uma das pioneiras entre fotojornalistas. Na temática das ruas, pela qual ela é mais amplamente conhecida, estão registrados personagens e cenários de sua vizinhança em Nova York, incluindo o Lower East Side de Manhattan, o Bronx e o perímetro espanhol do Harlem. Na maioria das imagens, as crianças são o centro da atenção de Helen Levitt, em flagrantes poéticos de jogos e brincadeiras e também distraídas, observando algo que está fora do enquadramento da fotografia, como se a fotógrafa estivesse em atitude clandestina e sua presença não fosse notada pelos personagens em cena.









Retratos clandestinos de Helen Levitt:

no alto, Helen Levitt no metrô em 1938, em

fotografia de Walker Evans. Acima e abaixo,

retratos no metrô
feitos por Helen Levitt

nos anos de 1978, 1973, 1975 e 1978.


No final da página, amigas saindo de férias (1973),

a loja de doces (1971), a cabine telefônica (1988),

na esquina de calção azul (1981) e

a menina procura algo (1980)









A citada influência marcante de Walker Evans torna-se mais evidente com as fotografias feitas por Helen Levitt no metrô de Nova York. São personagens anônimos, que remetem às célebres fotografias que Evans capturou no mesmo cenário, quando viajava quase diariamente no metrô, vestindo um sobretudo sob o qual ocultava sua câmera Contax de 35 mm, entre fevereiro de 1936 e janeiro de 1941. As fotografias de Evans no metrô (Veja mais em: Semióticas – Homens ilustres), que foram apresentadas em uma exposição que marcou época, no pós-guerra, e depois publicadas no fotolivro Many are called (Muitos são chamados), reeditado em 2004 pela Yale University Press, também influenciaram o jovem Stanley Kubrick, que trabalhou durante anos como fotojornalista em Nova York antes de se tornar cineasta (Veja mais em: Semióticas – Kubrick no Metrô).

Helen Levitt teve a oportunidade de acompanhar, em 1938, algumas viagens de trabalho de seu mentor Walker Evans fotografando anônimos no metrô de Nova York e, nos anos e nas décadas seguintes, repetiu por diversas vezes a experiência de fotografar os passageiros, também em anonimato, com seu próprio estilo e seu equipamento mais modesto. Uma seleção destas fotografias foi apresentada pela primeira vez em 1991, em uma exposição no MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York, e em 2017 foi reunida no fotolivro Manhattan Transit: The Subway Photographs of Helen Levitt (‎Walther König Editions).

No terceiro grupo temático da exposição “In the street”, onde estão amostragens das experiências de Helen Levitt com as fotografias coloridas, produzidas a partir da década de 1950, também estão selecionadas as imagens que provocam com mais intensidade o senso de humor e algum estranhamento do observador. Algumas cenas têm mesmo um certo apelo surrealista, ainda que sejam registros poéticos sobre a vida que a fotógrafa, depois de décadas de trabalho diário, continuava a encontrar nas ruas de Nova York. Há crianças brincando, casais de namorados, maridos e esposas, mães com seus bebês, mulheres indo e vindo, velhos solitários, pessoas comuns.

Em uma das fotografias coloridas, uma mulher de vestido azul florido está de costas, usando um telefone público, e ocupa todo o espaço da cabine, em uma esquina de Nova York, enquanto duas crianças, possivelmente seus filhos, estão espremidas contra as paredes de vidro, uma de cada lado. Parece que cada fotografia de Helen Levitt conta toda uma história repleta de detalhes. A maioria de suas imagens coloridas, para as quais ela dedicou muito trabalho e atenção em seus últimos anos de atuação, nunca foi publicada em livro, mas esteve presente nas retrospectivas que celebraram, nos últimos anos, seu olhar personalíssimo que conquistou legiões de seguidores na arte da fotografia.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Retratos clandestinos de Helen Levitt. In: Blog Semióticas, 27 de março de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/03/retratos-clandestinos-de-helen-levitt.html (acessado em .../.../…).



 
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26 de setembro de 2012

Kubrick no Metrô







A falta de sentido da vida sempre nos força a criar significados. E,
também, se algo pode ser escrito ou pensado, pode ser filmado.

–– Stanley Kubrick em entrevista à revista "Playboy" em 1968.



Alguns dos maiores diretores da história do cinema iniciaram a produção de seus filmes desenhando o “storyboard”, aquelas sequências de instruções para filmagens muito parecidas com histórias em quadrinhos que, no formato em que é hoje conhecido, foram desenvolvidas primeiro pelos estúdios de Walt Disney, no começo da década de 1930, reunindo etapas de processos similares utilizados em outros estúdios de Hollywood. Dentro e fora dos Estados Unidos, o próprio Disney, além de Alfred Hitchcock, Federico Fellini, Visconti, Glauber Rocha, Akira Kurosawa ou Jean Renoir, entre vários outros, produziram surpreendentes obras-primas em desenhos e pinturas para seus storyboards.

Para outros grandes cineastas, a produção tem início através de longos e obstinados testes em estudos fotográficos que, passo a passo, vão mapeando cenários, enquadramento de atores, movimentos de câmera, sequências e elipses dramáticas. Stanley Kubrick pertence a este segundo grupo. Cineasta do drama futurista “Laranja Mecânica”, da ficção científica “2001 – Uma Odisseia no Espaço” e do thriller de horror “O Iluminado”, entre outros clássicos em diversos gêneros, sempre citados entre os melhores de todos os tempos, Kubrick era o que se pode chamar de fotógrafo profissional. Tanto que, antes da consagração no cinema, trabalhou como fotógrafo da conceituada “Look Magazine”, em Nova York, entre 1945 e 1950.

Kubrick era um adolescente de apenas 17 anos quando vendeu sua primeira fotografia para a revista. Recebeu 25 dólares pelos direitos de publicação da imagem, que retratava a reação de desalento de um vendedor de jornais ao saber da notícia da morte do presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt. Foi o mais jovem fotógrafo contratado pela “Look” e exercitou diariamente, durante cinco anos, seu estilo, perfeccionista e repleto de complexas composições – que transparecem tão bem em cada um dos 13 grandes filmes que realizaria nas cinco décadas seguintes.










Kubrick em ação: no alto, abraça a filha, ao fundo,
enquanto fotografa Jack Nicholson e a equipe de
O Iluminado através do espelho. Acima, o diretor 
em fotos de 1975, nas filmagens de Barry Lyndon.
Abaixo, com sua câmera fotográfica, da qual era
inseparável, e a capa do catálogo fotográfico
Drama & Shadows, que reúne uma seleção
de fotografias de 1945-1950 de Kubrick,
editado pela Phaidon Press de Nova York.

Também abaixo, o retrato do jornaleiro em
Nova York, comovido pela morte do presidente
dos EUA Franklin D. Roosevelt, primeira foto
que o jovem Kubrick, aos 17 anos, vendeu
para publicação em 1945 na Look Magazine;
e uma imagem de Kubrick para a série Zoo,
publicada em janeiro de 1946 pela Look:
"How people look to monkeys" (Como
as pessoas olham para os macacos)















Sempre citadas pelos biógrafos, por conta das correlações com enredos, ambientações e personagens dos filmes do cineasta, as muitas séries de fotografias, algumas delas premiadas, que o jovem fotógrafo Stanley Kubrick produziu para a revista “Look”, permaneciam como enigmas para a maioria do público. Estavam fora de circulação desde a década de 1950 e, desde 1971, com a extinção da revista, todo o acervo permanecia inacessível.

O mistério se desfez há poucos meses, graças às pesquisas do alemão Rainer Crone, jornalista e professor de História da Arte. As pesquisas de Crone levaram à descoberta de todo o acervo das milhares de fotografias do jovem Kubrick: estavam arquivadas e esquecidas, há décadas, na Biblioteca do Congresso norte-americano, em Washington, e no Museum of the City of New York.










A foto enquanto storyboard



Para os fãs do cineasta e os pesquisadores de história da fotografia e do cinema, duas boas notícias: a primeira é que a editora Phaidon Press de Nova York publicou um catálogo com uma seleção das fotografias realizadas entre 1945 e 1950 pelo jovem Stanley Kubrick. A segunda boa notícia é que o Museum of the City of New York abriu uma exposição permanente (veja o link para uma visita virtual no final deste artigo) com mais de 200 fotografias feitas por Kubrick para a “Look Magazine”, a grande maioria totalmente inédita desde a publicação original nas páginas da revista, incluindo também aquelas que nunca foram publicadas.

As imagens, também publicadas em um catálogo editado pela Taschen, foram selecionadas pela curadoria, a cargo de Rainer Crone, entre mais de 12 mil negativos produzidos pelo futuro diretor e localizados dentro de sacos plásticos, cobertos de pó, nos arquivos em Washington e Nova York. No site do museu, há algumas fotografias produzidas por Kubrick que estão à venda e muitas delas também estão disponíveis para visualização ou download gratuito.













No alto, Kubrick em 1956, nas filmagens de
 The Killing ("O Grande Golpe"). Acima, em
1946, aos 17 anos, quando começou a trabalhar
como fotógrafo para a Look Magazine; e um de
seus registros de maestria como fotojornalista:
The shoeshine boy (Engraxate) fotografia de 1947

Abaixo, flagrantes de pescadores na vila de
Nazaré, Portugal, em duas das imagens da
fotorreportagem realizada por Kubrick em
1948 sob encomenda da Look Magazine










.



Na apresentação à exposição no Museum of the City of New York, Rainer Crone, que publicou em 2006 a obra biográfica “Stanley Kubrick: Drama and Shadows”, destaca que o perfeccionismo, as características marcantes de Kubrick como diretor já estavam presentes em suas fotografias. E não apenas isso, mas também o fato de Kubrick relacionar-se com a fotografia de uma forma "cinematográfica". Segundo Crone, Kubrick inventou um conceito na época totalmente novo, que consiste em contar histórias com imagens fixas. Era como se ele já fosse, desde então, um cineasta. Na exposição, a maioria das fotos surge como verdadeiros storyboards.

As fotografias do jovem Kubrick foram divididas em oito segmentos, retratando imagens separadas e séries específicas. Alguns temas se destacam na variedade porque contam histórias completas: uma reportagem fotográfica sobre uma viagem a Portugal em 1948, na qual o fotógrafo tenta demonstrar que o patrimônio histórico e cultural português saiu ileso da Segunda Guerra; o trabalho infantil no dia-a-dia de um pequeno engraxate do Brooklin chamado Mickey; os artistas e os animais de um circo mambembe, dos quais emana um suave tom de melancolia, de algo em vias de extinção, com os dias contados; a perseguição e a captura de criminosos pela polícia de Nova York; e uma instituição privada dedicada a abrigar meninos e meninas órfãos de guerra.














Fotografias do repórter Stanley Kubrick
para a Look Magazine, em Nova York, nas
décadas de 1940 e 1950: no alto, duas imagens
do ensaio com a atriz Betsy Von Furstenberg
em 1950. Acima, uma imagem da
série Circus, de 1948.

Abaixo, uma seleção de flagrantes de
Kubrick para: 1) umpassante anônima nas
ruas de Nova York, em 1946; 2) modelo em
pose para estudantes na Escola de Belas
Artes da Columbia University, em 1948; 3) um beijo
do casal anônimo no banco do parque, em Nova York;
4) o 
beijo do casal anônimo no Central Park, em 1946,
uma cena que Kubrick iria recriar em seu filme de
estreia, Medo e Desejo (Fear and Desire),
que realizou aos 24 anos, em 1953;
5) o jovem Kubrick sorridente com a equipe
de "Medo e Desejo", durante as filmagens; 
6) o autorretrato de Kubrick no camarim com
a dançarina Rosemary Williams, em 1948;
7) as imagens dbelo e polêmico ensaio
de 1949 que ilustrou a publicação na
revista "Look" da longa entrevista que
Kubrick fez com o ator Montgomery Clift;
e 8) o banho do boxeador Rocky Graziano
depois de mais uma vitória arrasadora em 1945.
Também abaixo, uma seleção das célebres
fotografias registradas pelo jovem Kubrick,
às escondidas, na década de 1940,
em flagrantes no Metrô de Nova York
























Outros temas que chamaram minha atenção, na variedade das fotografias feitas pelo jovem Stanley Kubrick, são as imagens que encerram complexidades por trás de uma certa simplicidade apenas aparente, que sobressai à primeira vista – caso dos retratos da velha guarda dos músicos de jazz, do ensaio sobre uma jovem celebridade do Pós-Guerra (a precoce Betsy von Fürstenberg, bailarina aos 7 anos, modelo aos 14, em Paris, e atriz de sucesso aos 18) ou os estudantes no campus da Universidade de Columbia, um espaço reservado aos herdeiros das elites.

Crone, no breve texto de apresentação ao livro, também reconhece na maioria das fotografias esta complexidade que poderia ser trivial ou simples para um olhar de principiante e diz que se empenhava em uma pesquisa séria sobre a fase de fotógrafo do cineasta quando, em 1998, procurou o próprio Kubrick, em Londres, em busca de ajuda. Mas Kubrick revelou, para espanto de Rainer Crone, que não possuía nenhuma das imagens feitas sob encomenda da “Look” e que não tinha ideia de onde se encontravam os negativos. Não sabia nem mesmo se todas aquelas fotos ainda existiam. No ano seguinte, Kubrick morreu, deixando como legado seu último filme, “De Olhos Bem Fechados”, baseado na obra de Arthur Schnitzler, “Breve Romance de Sonho”. Desde aquele encontro, Crone, por mais de uma década, continuou dedicado à árdua missão de localizar o paradeiro do acervo.























O cineasta contido no fotógrafo



A maior parte das fotos sob encomenda da “Look” foi feita com uma mesma câmera Rolleiflex, com negativo no formato 6 X 6, o que dá origem a algumas reproduções no formato quadrado e não retangular. O biógrafo Rainer Crone explica, como apresentação à obra do repórter fotográfico Stanley Kubrick, que ele aproveitou de maneira muito hábil a exigência da revista de dispor as fotos em sequência narrativa, para ilustrar reportagens e editoriais sobre os mais diversos assuntos.

“A revista queria séries sobre a cidade e sobre pessoas anônimas", explica Crone, no texto de apresentação à exposição no Museum of the City of New York. "Queriam imagens inéditas, sem nenhuma exigência de qualidade ou limitação de assunto. O objetivo era criar um banco de imagens para ilustrar reportagens sobre as questões cotidianas de Nova York e dos Estados Unidos no Pós-Guerra. E Kubrick, apesar de muito jovem, foi muito hábil e conseguiu transformar imagens estáticas (still pictures, próprias da fotografia) em sequências que davam lugar a verdadeiras histórias, espécie de ‘contos’ fotográficos tão fascinantes como aqueles que ele viria a realizar mais tarde com imagens em movimento”. 

















Três conclusões importantes de Crone: 1) as qualidades do Kubrick cineasta estavam já contidas no Kubrick fotógrafo; 2) as fotografias de Kubrick, antes de tudo, belíssimas, desenham uma linha evolutiva que leva do fotógrafo ao cineasta; 3) adivinha-se, na disposição estética das séries e em cada fotografia, em separado, uma “poética” da imagem que busca uma certa ambiguidade. O curador e biógrafo busca seu argumento nas evidências das imagens em exposição e nas palavras que ouviu do próprio Kubrick:

Sempre pensei que uma ambiguidade crível, realística de verdade, constitua a melhor forma de expressão”, declarou o cineasta ao biógrafo, em 1998, quando ainda filmava “De Olhos Bem Fechados”. “Isso por diversas razões. Primeiro de tudo, ninguém gosta que as coisas venham explicadas, ninguém gosta que a verdade do que está acontecendo chegue mastigada. E segundo, coisa ainda mais importante, ninguém sabe de verdade o que seja o real ou o que esteja de fato acontecendo”.











Acredito que uma verdadeira, perfeita ambiguidade", prossegue Stanley Kubrick, "seja alguma coisa que pode ter diversos significados, cada um dos quais detendo algum aspecto da realidade, e cada um, ao mesmo tempo, induzindo o observador a mover-se emocionalmente na direção em que desejamos que ele se mova. Creio que uma asserção clara, literal e ‘objetiva’ seja em si mesma falsa e não terá jamais o poder de uma perfeita ambiguidade.”



Da ficção científica ao drama histórico



Nos melhores filmes de Kubrick – e Crone faz questão de destacar que, no caso de Kubrick, os melhores são quase todos – reencontra-se essa característica da ambiguidade, que já podem ser intuídas pelo observador das fotos. A imagem costuma ser clara e misteriosa ao mesmo tempo, como se Kubrick trabalhasse nos limites do hiper-realismo. Em cada um de seus filmes, a ambiguidade transparece, independente do tema – seja na ficção alucinante de “Laranja Mecânica”, no humor negro sobre a ameaça nuclear de “Dr. Strangelove”, com o comediante Peter Sellers, ou num drama histórico e amoroso como “Barry Lyndon”.








Na variedade de fotografias em preto e branco, entre assuntos que vão do mais poético e banal ao retrato mais surpreendente, difícil apontar uma preferência. Observando a cronologia do catálogo virtual do City Museum, fica uma forte impressão de que estão nos primeiros trabalhos de Kubrick para a revista “Look” as características mais enigmáticas – como se o fotógrafo adolescente estivesse mais criativo e espontâneo no começo de sua relação com o mundo através das lentes da câmera, surpreso com “a mais perfeita ambiguidade e com seus diversos significados”. Entre as centenas de fotos disponíveis, prendem mais minha atenção os longos ensaios sobre o metrô, intitulada “Stanley Kubrick, Life and Love on the New York City Subway”.

São cenas registradas pelo jovem Kubrick dentro dos trens e estações do metrô de Nova York, sua cidade-natal, e que nunca foram publicadas pela revista. Por certo influenciado pelas lendárias fotorreportagens de Walker Evans – que uma década antes, em 1938, marcou época ao registrar no mesmo metrô a série “Many Are Called” (“muitos são chamados”), com retratos impressionantes de anônimos que, na quase totalidade dos casos, estavam tão absortas na vida que sequer percebiam que naquele momento estavam sendo fotografados (veja mais sobre Walker Evans em Semióticas: Homens ilustres) – o olhar de Kubrick também encontra entre os passageiros, através das lentes de sua câmera, flagrantes de cansaço, de momentos solitários nas plataformas, alguns beijos e carícias furtivas trocadas pelos namorados.














O observador mais atento vai perceber, em cada foto do metrô, que há uma estranha simetria entre as muitas histórias e personagens, como se fossem cenas de um mesmo filme. “As pessoas que andam de metrô tarde da noite são menos inibidas do que aquelas que andam durante o dia. Casais fazem amor abertamente, bêbados dormem pelo chão e outras atividades pouco comuns ocorrem tarde da noite no metrô”, declarou Kubrick a Crone, sobre a série no metrô de Nova York, que também estava entre suas preferidas.



Fotografias da madrugada



Kubrick revelou as artimanhas para esconder a câmera e disse que, para cumprir a pauta de trabalho da "Look Magazine" e tirar fotos com mais liberdade, embarcou para viagens de metrô por duas semanas, em 1946, registrando imagens na madrugada, entre meia-noite e seis da manhã. No depoimento a Crone, Kubrick também reconheceu que, na aventura do metrô, algumas das que poderiam ter sido suas melhores imagens se perderam na última hora, ou por causa de um tremido no vagão, ou porque outro passageiro esbarrou nele e desfez o enquadramento minuciosamente planejado, ou porque alguém andou de repente na frente da câmera e seu assunto deixou o trem.











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Repetindo a estratégia das incursões de Walker Evans, que sempre usava casaco ou sobretudo para esconder a câmera e registrar os anônimos nos trens e estações, Kubrick investiga olhares e atitudes, sem que nenhum dos passageiros perceba sua presença. Mais de meio século depois, proporciona um encontro às escondidas para que possamos descobrir, no instantâneo, a privacidade de homens e mulheres de outros tempos.

São muitos personagens: a moça que viaja em pé, nitidamente contrariada com seu desconforto, enquanto alguns marmanjos sentados, distraídos a conversar, não parecem muito dispostos a ceder um lugar a ela; as duas senhoras que observam de soslaio o passageiro musculoso e sedutor; o rapaz que segura o buquê de flores no vagão lotado; o bebezinho que dorme no colo da mãe, espremida entre outros passageiros. Em mais de 60 anos, os costumes não mudaram muito, a não ser, talvez, por detalhes do vestuário e pela frequência de jornais e revistas impressos que, em nossa época, no metrô como em outros espaços da vida cotidiana, cada vez mais são substituídos por telefones celulares e toda variedade de dispositivo eletrônico portátil individual.




















Kubrick decidiu romper seu contrato de repórter fotográfico com a revista “Look” em 1951, aos 22 anos, e naquele mesmo ano, incentivado pelo pai, estrearia como cineasta, com três documentários de curta-metragem em 16mm – “Day of the Fight”, “Flying Padre” e “The Seafarers”. Teria ainda uma temporada trabalhando na TV, antes de conseguir realizar seu primeiro longa-metragem, “Medo e Desejo" ("Fear and Desire”, 1953), produção que o perfeccionismo de Kubrick transformou em drama biográfico: o pai financiou o filme, depois de penhorar a casa em que a família morava para conseguir um empréstimo, mas um tio rico do jovem Kubrick terminou por cobrir o orçamento de R$ 13 mil, ampliado depois com os custos de sonorização e montagem. Contudo, o cineasta estreante e perfeccionista avaliou o trabalho como amador e, mesmo com o filme recebendo boas críticas, tratou de retirá-lo de circulação. Até hoje “Fear and Desire” permanece fora de catálogo, conhecido por poucos.

Logo após, na filmografia de Kubrick, outro sucesso de crítica, premiado como melhor diretor no Festival de Locarno, Suíça, mas ignorado pelo público: “Killer's Kiss” (“A Morte Passou por Perto", 1955), trama intrincada, na tradição do gênero "criminal noir", sobre um boxeador fracassado e apaixonado pela vizinha, uma dançarina que namora o patrão criminoso. Seu terceiro filme é “The Killing” (“O Grande Golpe”), de 1956, thriller policial impecável sobre os planos de um grande assalto que estabeleceu para Kubrick um ritual de passagem: de fotojornalista e cineasta independente quase desconhecido, passaria ao primeiro time dos grandes estúdios, aclamado já a partir do próximo filme, o drama de guerra e contra a guerra "Glória Feita de Sangue" ("Paths of Glory", 1957), como autor de obras-primas incontestáveis, entre as mais sérias e mais importantes realizações do cinema na segunda metade do século 20.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Kubrick no metrô. In: Blog Semióticas, 29 de setembro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/09/kubrick-no-metro.html (acessado em .../.../...).



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No alto, Kubrick em autorretrato datado de
1951, época em que decidiu trocar a carreira
de fotógrafo pela de cineasta. Acima, em 1960,
com Marlon Brando, na época em que
desentendimentos sucessivos interromperam
a parceria de Kubrick e Brando na produção de
One-Eyed Jacks” (no Brasil, “A Face Oculta),
uma história de traição e vingança no Velho Oeste.
Teria sido o único faroeste de Kubrick, que realizou
obras-primas em vários gêneros, e terminou como
único filme com direção de Marlon Brando,
que também é o protagonista.

Também acima, Stanley Kubrick em 1964,
durante as filmagens de Doutor Strangelove;
em 1960, com Woody Strode e Kirk Douglas,
durante as filmagens de Spartacus; e em 1999,
com Tom Cruise e Nicole Kidman, nas filmagens
de Eyes Wide Shut, seu último filme.

Abaixo, Kubrick em dois momentos das filmagens
de 2001 - Uma Odisseia no Espaçotestando
lentes para uma cena com Keir Dullea e na
espaçonave cenográfica com os astronautas
Keir Dullea e Gary Lockwood. Também
abaixo, o misterioso monolito alinhado
ao Sol e à Lua em uma cena de 2001
















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