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27 de agosto de 2012

Biografia de uma canção






Billie Holiday consegue expressar, em apenas um refrão, 
mais emoção do que a maioria das atrizes em três atos. 
..........
––  Jeanne Moreau.    


Poucas vezes uma canção foi tão longe ao denunciar a situação aviltante do preconceito e da violência indiscriminada contra os negros. E o acaso e a sorte fizeram com que esta mesma canção ficasse para sempre identificada com uma personalidade que superou todos os obstáculos imagináveis para permanecer, em primeiro plano, no Olimpo das grandes cantoras de todos os tempos: Billie Holiday (1915–1959).

Billie tinha 23 anos em 1939, quando cantou pela primeira vez “Strange Fruit” com seus versos sofridos que descrevem o horror dos linhamentos de negros no Sul dos Estados Unidos. A trajetória da canção que merece o título de emblemática está descrita em “Strange Fruit – Billie Holiday e a Biografia de uma Canção”, livro que o jornalista norte-americano David Margolick publicou no ano 2001 e que agora chega ao Brasil em edição da Cosac Naify, com tradução de José Rubens Siqueira e apresentação de André Midani, veterano “capo” da indústria do disco no Brasil.

Apaixonado por Lady Day, como é de praxe com todos os amantes do jazz e do blues, Margolick mergulhou fundo na história e no significado de “Strange Fruit”. Seu livro-reportagem esclarece e desfaz equívocos sobre a canção – uma obra alegórica e comovente que o historiador Leonard Feather definiu como "o primeiro protesto relevante em letra e música, o primeiro clamor não emudecido contra o racismo".










 
Biografia de uma canção: no alto
e acima, Billie Holiday no estúdio,
fotografada em 1958 por Dennis Stock.
Abaixo, Billie no palco, 
no Sugar Hill Nightclub,
em Newark, New Jersey, em abril de 1957,
em fotografia de Bob Parent; e acompanhada
pela orquestra de Teddy Wilson no
Newport Jazz Fest, em 1954, em
fotografia de John Vachon. Também
abaixo, fotografada nas ruas em 1956,
por Moneta Sleet Jr. para uma reportagem
especial da revista Ebony; e em sua
última sessão de gravações no estúdio
em 3 de março de 1959










No mesmo ano em que canta nos palcos “Strange Fruit” pela primeira vez, Billie grava a canção em um disco em 78 rotações pelo selo Commodore. Anos depois, voltaria a gravá-la com outro arranjo pelo mesmo selo e outras quatro vezes para a Verve. Nas últimas décadas, muitos arriscaram novas versões para a canção, lembra Margolick, que destaca a gravação de Nina Simone e cita algumas outras muito além do universo das fronteiras do jazz e do blues, incluindo de Cassandra Wilson a Tori Amos e Siouxie & The Banshees, de Sting e UB-40 a Dee Dee Bridgewater, de Abbey Lincoln a Carmen McRae e Patti Smith, de Diana Ross a Jeff Buckley, Sidney Bechet, John Legend, Marcus Miller, Cocteau Twins, Beth Hart, Rokia Traoré e Björk.

O livro de Margolick, que foi sucesso imediato nos Estados Unidos e na Europa, deu origem a outros relatos “biográficos” escritos por jornalistas sobre discos e canções. Alguns deles também alcançaram a condição de best-sellers, caso de “A Love Supreme” (2002) e “Kind of Blue” (2007), de Steve Khan, publicados no Brasil pela Barracuda, e “Stardust Melodies” (2002), em que Will Friedwald apresenta a trajetória de clássicos do cancioneiro norte-americano, como “Body and Soul”, “Night and Day” e “Saint Louis Blues”. O primeiro exemplar da safra nacional foi anunciado para chegar às livrarias em 2015: o poeta e ensaísta Eucanaã Ferraz está mergulhado na pesquisa para contar a história de um marco da bossa nova, “Garota de Ipanema”, canção criada por Tom Jobim e Vinicius de Moraes. “Garota de Ipanema – A biografia de uma canção” será publicado pela Companhia das Letras.



Relato em polifonia



Primeiro destaque do novo gênero que apresenta biografias de discos e canções, o livro de Margolick aposta no que o russo Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895–1975), um dos pioneiros dos estudos em Semiótica, batizou de “polifonia”: aquela estratégia narrativa em que fontes e versões distintas, apresentadas simultaneamente, contribuem para o melhor entendimento da história. Ao leitor, Margolick confessa que demorou a entender que os “estranhos frutos” em questão não eram cerejas ou maçãs, e sim negros enforcados e dependurados em árvores nos estados ao Sul de seu país.  














A origem da canção e todas as gravações de “Strange Fruit” feitas por Billie são investigadas por Margolick, desde aquela primeira noite no salão do Café Society, um bar construído no porão da Sheridan Square, no Greenwich Village de Nova York, um território frequentado por artistas e intelectuais em que a intolerância e o preconceito racial não eram admitidos. Uma das fontes para o relato incomum de Margolick é a autobiografia “Lady Sings the Blues”, publicada por Billie Holiday pouco antes de sua morte, em 17 de julho de 1959, em um quarto do Hospital Metropolitano de Nova York, pouco tempo depois de ter o quarto invadido por policiais. O atestado de óbito registrou que a morte ocorreu em decorrência de edema pulmonar, cirrose hepática e insuficiência cardíaca.

Não houve nem mesmo uma tentativa de aplauso quando terminei”, escreveu Billie em sua autobiografia. “Então uma pessoa começou a aplaudir nervosamente e, de repente, todo mundo estava aplaudindo”. Naquela noite, Billie deixou o palco em silêncio, sem retornar para o bis habitual, porque ela estava mesmo com medo de interpretar uma canção que atacava de frente o ódio racial – recorda Barney Josephson, que era dono do Café Society em 1939 e foi entrevistado por Margolick em 1998.








Biografia de uma canção: abaixo,
Billie Holiday fotografada por Carl
Van Vechten para a a capa da
revista Down Beat, em fevereiro
de 1947. Acima, em 1949, também
fotografada por Van Vechten










A entrevista com Barney Josephson, publicada pela revista “Vanity Fair” em 1998, foi ampliada e deu origem ao livro, que abarca a trajetória de Billie Holiday e o avanço nas lutas contra a conivência da sociedade norte-americana com o preconceito e os linchamentos de negros. Através de outras entrevistas e de pesquisas em jornais e revistas, Margolick repercute aquela primeira apresentação da canção por Billie e o destaque que “Strange Fruit” foi ganhando nas apresentações das noites seguintes no mesmo clube e em outros palcos, numa época em que ainda nem se sonhava com a música de protesto. 

 

Branco, judeu, comunista



O jornalista também investiga as relações de “Strange Fruit” com o movimento pelos direitos civis, que só eclodiria 16 anos depois, após a prisão de Rosa Parks, ativista que se negou a ceder seu lugar no ônibus para um branco na cidade de Atlanta, na Geórgia. Os números garimpados por Margolick impressionam: de acordo apenas com os registros oficiais, entre 1889 e 1940 mais de 2.700 negros foram linchados e assassinados no Sul dos EUA.
 







David Margolick, autor do livro
“Strange Fruit Billie Holiday e
a Biografia de uma Canção”.
Abaixo, Billie na capa da revista
Ebony Magazine em julho de 1949;
e a gravação original de "Strange Fruit"
feita em 1939 por Billie Holiday
pelo selo Commodore Records









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Daquela noite no Café Society até sua morte em 1959, aos 44 anos, Billie Holiday causava comoção todas as vezes que entoava “Strange Fruit”, tanto que tomou para si a autoria da canção. Margolick comenta o passo a passo de sua investigação a partir do momento em que entendeu o significado dos versos entoados por Billie. E confessa que seu interesse pelo assunto cresceu quando ele descobriu que o autor da canção era Abel Meeropol, um homem branco, judeu, membro do partido comunista e considerado por seus amigos um grande idealista, tanto que adotou os filhos do casal Julius e Ethel Rosenberg, executados nos Estados Unidos em 1953 sob a acusação de serem espiões a serviço da extinta União Soviética.

Admirado por lendários compositores como Kurt Weill e Ira Gershwin, Abel Meeropol tinha pouco mais de 30 anos e era professor no bairro negro do Bronx, em Nova York, quando viu pela primeira vez uma fotografia feita por Lawrence Beitler. A foto, publicada na revista “New York Teacher”, estampava o linchamento e o enforcamento de dois negros em 1930, em Indiana. O impacto da imagem levou Meeropol a escrever um poema, “Bitter Fruit”, mais tarde transformado na bela e alegórica letra da canção.








      
   


Biografia de uma canção: Billie
com Louis Armstrong, seu amigo
de várias parcerias em estúdios e
também em turnês. Acima, Louis
e Billie com Barney Bigard em
1947, em cena de New Orleans,
filme de Arthur Lubin. Abaixo, Billie
no palco, em 1951, acompanhada pela
orquestra de Count Basie









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Polêmica demais para o jazz



O próprio Abel Meeropol levou “Strange Fruit” para Billie Holiday. Em 1939, ele assistiu Lady Day se apresentando no Café Society. Impressionado com a performance da cantora, apresentou a ela sua composição. Billie, no entanto, não teve interesse imediato e demorou a apresentar a canção no palco pela primeira vez, em arranjo para voz e piano. Mas desde a primeira vez que Billie cantou “Strange Fruit” foi uma comoção na plateia.

A gravação, entretanto, teve que superar um impasse: a gravadora Columbia Records, com a qual Billie tinha um contrato de exclusividade, não autorizou e recusou-se a gravar a canção, temendo protestos. Billie recorreu ao principal produtor da Columbia, John Hammond, e mesmo assim não teve autorização. Billie continuou apresentando “Strange Fruit” nos shows, algumas vezes cantando a cappella, sem acompanhamento dos músicos, e sempre comovendo a plateia, até que Milt Gabler, executivo da Commodore Records, assistiu a uma dessas apresentações e ficou tão impressionado que procurou os escritórios da Columbia, conseguindo um contrato especial para que Billie fizesse a gravação.

Margolick justifica o estranhamento e a comoção das plateias que assistiam às apresentações ao vivo e também o sucesso quando a gravação começou a ser vendida em discos e passou a ser tocada com frequência nas estações de rádio. Ele esclarece que “Strange Fruit” era muito diferente de tudo o que Billie interpretara até então: não lembrava as baladas de amor que ela havia gravado na década anterior e tampouco se alinhava à tradição do blues ou às inovações estilísticas no cenário do jazz. A interpretação personalíssima de Billie, sua agonia pessoal, acentuava o tema angustiante da canção – um grito contra o racismo – que também representava os obstáculos que alguém como Billie, uma cantora negra numa sociedade dividida entre brancos no poder e negros subalternos, teria de superar. 





















Billie Holiday e outras lendas no
Bop City Nighclub, em Nova York:
no alto, em duas fotografias feitas por
Elliot Erwitt em 1958. Acima, com
o escritor William Falkner em 1956,
em fotografia de Moneta Sleet;
em 1950, no Bop City Nighclub com
Louis Armstrongcom Duke Ellington
e com Ella Fitzgerald em fotografias
de Joseph Schwartz.

Abaixo, Billie em Parisem 1958, no aeroporto
e em dois momentos no palco do lendário
Le Mars Club na noite de 20 de novembro,
em fotografias de Jean-Pierre Leloir.

Também abaixo: 1) Billie no ensaio fotográfico
de Phil Stern em agosto de 1955, durante as
gravações do álbum Music for Touching;
2) Billie em fotografia de 1949 no estúdio de
Carl Van Vechten; 3) Billie no palco do New York
Jazz Festival, em agosto de 1957, em fotografia
de Jerry Dantzic4) Billie em uma clássica
sequência de fotos em cores feita por
Carl Van Vechten em 1949; e 5) uma cena
de horror: o linchamento de dois homens
negros na Virginia, EUA, sem nenhum
julgamento. A prática do linchamento contra
negros tem sua origem na década de 1780
nos Estados Unidos, atribuída a dois militares
e latifundiários: Charles Lynch e William Lynch
(daí a palavra "linchamento), da Virgínia, que
instituíram a "lei de Lynch" para designar o
ódio racial contra negros e índígenas




















 
Strange Fruit”, descaca David Margolick, escapa a qualquer categorização musical e não lembra em nada “Lover Man”, “My Man”, “God Bless the Child”, “Glummy Sunday” ou “Blue Moon”, entre outros sucessos que Billie já havia emplacado naquela época. “É uma canção artística demais para ser música folk, politicamente explícita e polêmica demais para ser jazz", reconhece. Os versos alegóricos de Meeropol, que marcaram profundamente a carreira de Lady Day e foram definitivos para mudar os rumos da história no século 20, ganharam uma versão do poeta Carlos Rennó:


Árvores do Sul dão uma fruta estranha
Folha ou raiz em sangue se banha
Corpo negro balançando, lento
Fruta pendendo de um galho ao vento

Cena pastoril do Sul celebrado
A boca torta e o olho inchado
Cheiro de magnólia chega e passa
De repente o odor de carne em brasa

Eis uma fruta para que o vento sugue,
Pra que um corvo puxe, pra que a chuva enrugue,
Pra que o sol resseque, pra que o chão degluta,
Eis uma estranha e amarga fruta









Do Café Society para outros palcos e daí aos discos, aos programas de rádio e aos ouvintes do mundo inteiro, o peso da canção lançada por Billie Holiday rendeu a ela muitos desafetos e agressões as mais diversas, inclusive físicas. Margolick reconstitui os capítulos do drama e lembra que Billie declarou em 1947 à revista “Downbeat”: “Fiz uma porção de inimigos, sim. Cantar aquilo não me ajudou em nada”. Puro engano. A mais mítica dos intérpretes do jazz e do blues, batizada como Eleanora Fagan Gough pelos pais adolescentes, prostituída aos 12 anos e drogada daí em diante, Lady Day a cantar com sua voz sublime e levemente rouca “Strange Fruit” forçou toda uma nação a enfrentar alguns dos seus mais sombrios impulsos.



por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Biografia de uma canção. In: Blog Semióticas, 27 de agosto de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/08/biografia-de-uma-cancao.html (acessado em .../.../…).














15 de maio de 2012

Estilo Crumb






Desisti de ser um grande desenhista, porque, quando ainda
estava na escola, percebi que o formato havia ficado travado,
cheio de fórmulas, preso a padrões muito rígidos e comerciais.
Eu acreditava que eu era completamente inadequado a padrões.

–– Robert Crumb.    



Descobri a arte do norte-americano Robert Crumb quando eu era menino, em Barbacena, no interior de Minas Gerais. Meu tio assinava duas revistas na época de difícil acesso, “Mad” e “Grilo”, e tive o privilégio de ser o segundo leitor assim que cada exemplar chegava pelo correio. Tempos depois, também encontrei aqueles traços característicos do Crumb, estranhos e bem-humorados, nas capas dos discos de Janis Joplin e de mestres do blues. Mas demorou até que eu encontrasse suas HQs em livro. Demorou, mas aconteceu: algumas das melhores obras de Crumb agora estão publicadas no Brasil.

Entre suas obras-primas mais recentes está uma adaptação da Bíblia Sagrada: o mais genial e iconoclasta dos cartunistas em atividade, hoje aos 69 anos de idade, ousou levar para o mundo dos quadrinhos o Gênesis, primeiro livro da Bíblia, que narra a criação do mundo e a história de Adão e Eva. Mas a surpresa sobre sua nova investida vai se dissipando quando o leitor percebe que o Gênesis traz desde a Antiguidade alguns dos ingredientes que fizeram a fama de Crumb nas últimas décadas.





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A arte de Robert Crumb: no alto,
ilustração da capa de Blues. Acima,
ilustração para Adão e Eva, a capa e a
contracapa da edição em inglês de Gênesis.

Abaixo, uma amostra do traço de Crumb
para uma cena bíblica em Gênesis;
a capa da edição em espanhol; e a
sisuda e recatada capa da edição
nacional de Gênesis, lançada pela Conrad







"Se minha interpretação visual e literal do livro do Gênesis ofender ou ultrajar alguns leitores", escreveu Crumb na apresentação, "o que parece inevitável dada a reverência de tantas pessoas por ele, tudo o que posso dizer em minha defesa é que abordei isto como um trabalho de pura ilustração, sem intenção de ridicularizar ou fazer piadas visuais". A ressalva do autor é, no mínimo, sincera, porque o Deus todo-poderoso do judaísmo e do cristianismo, como não poderia deixar de ser, é o protagonista destacado no Gênesis segundo Crumb.

Mas no traço do cartunista, que nasceu em uma família católica, trata-se de um Deus vingativo, carregado de raiva e com longos cabelos e barbas. Crumb também confessa que uma noite, há muitos anos, sonhou com a figura exatamente como ela aparece retratada, antes mesmo de pensar em fazer sua versão em quadrinhos para o texto da Bíblia Sagrada. Sem pestanejar, esse Deus comete dois genocídios no intervalo de poucas páginas – um durante o Dilúvio que tem Noé como protagonista, no episódio da arca da salvação; outro na chuva de fogo implacável que vem dizimar as cidades de Sodoma e Gomorra.

Crumb também recria toda aquela sucessão de incestos, sacrifícios, inveja e misoginia que os judeus veneram na Torá e os cristão fundamentalistas idolatram no Antigo Testamento. Ele diz que dedicou cinco anos de trabalho diário para concluir a adaptação e, na breve introdução ao livro, destaca que tentou ser muito respeitoso com as crenças religiosas milenares.



Gênesis e Blues



Se minha interpretação literal e visual do Gênesis ofende alguns leitores”, alerta, “em minha defesa só posso dizer que me aproximei dele como um trabalho meramente ilustrativo, sem intenção de ridicularizar nada nem fazer brincadeiras visuais”. O lançamento de “Gênesis” aconteceu simultaneamente em 20 países, incluindo o Brasil, precedido pela publicação de trechos na revista mais influente dos EUA, a “The New Yorker”, que tem Crumb em seu elenco de colaboradores. 

 







A estratégia de lançamento levou “Gênesis” para as listas dos mais vendidos, um feito raríssimo para uma publicação em quadrinhos. Além do “Gênesis”, Crumb agora está disponível nas livrarias brasileiras com alguns de seus álbuns especialíssimos, publicados pela editora Conrad, incluindo, entre outros, “Minha Vida”, “Blues”, “América”, “Meus Problemas com as Mulheres”, “Fritz, the Cat” e “Mr. Natural”.

Há ainda “Kafka de Crumb”, que além dos desenhos do cartunista traz texto de David Zane Mairowitz. Os álbuns de Crumb editados pela Conrad não chegam a ser uma HQ e nem um livro propriamente dito, mas flutuam entre ambos. Assim como os outros clássicos de Crumb, “Kafka” traz resumos, análises e seus desenhos característicos – no caso, imagens que traduzem “A Metamorfose”, “Na Colônia Penal”, “O Processo” e “O Castelo”, entre outros escritos de Kafka, considerado por muitos o nome mais fundamental da literatura do século 20. 

 







Além dos álbuns de HQ, a arte do cartunista também é celebrada em um documentário antológico – “Crumb”, produzido por David Lynch e dirigido por Terry Zwigoff em 1994. O filme reúne imagens de arquivo, charges e depoimentos – do próprio Crumb e de seus amigos e parentes. Há cenas impagáveis, como o irmão descrevendo rituais inacreditáveis ou Crumb imitando Janis, que lhe disse: “Oh, Robert, precisa deixar o cabelo crescer, botar uma bata, calça boca-de-sino. Tá muito caretão”. Crumb conta e se diverte – como virginiano, ele prefere os uniformes: as mesmas roupas no mesmo estilo.



Bizarro e politizado



O humor mais bizarro e politizado de Crumb aparece por inteiro em “Minha Vida”, autobiografia em quadrinhos que mantém a contestação gaiata que fizeram dele uma lenda entre os clássicos imbatíveis da era do rock. Imagens e piadas visuais, ideias ousadas e uso diversional de sexo e alucinógenos, que ele vem burilando desde o final dos anos 1950, contra o pior conservadorismo, revelam em “Minha Vida” as experiências confessionais do autor e constroem seu melhor melhor personagem: ele mesmo.









Com doses generosas de muita sinceridade, muito humor negro e nenhuma concessão à moral vigente na indústria cultural, “Minha Vida” encadeia histórias publicadas do começo dos anos 1970 a 1994, incluindo cartuns, autorretratos, narrativas mais extensas e outras de poucas páginas ou até de apenas um quadro, tanto em preto-e-branco como no mais lisérgico colorido. Seu traço febril, distorcido, genial e demolidor, explode em sarcasmo subversivo contra tudo e contra todos.

Em “Minha Vida”, Crumb fala de si com nenhuma piedade, enumerando seus melhores ataques contra a hipocrisia, mais os escândalos e muitos problemas com a justiça nos Estados Unidos, que o levariam por fim ao exílio na Europa na última década. Em 2010, quando esteve no Brasil como convidado especial da Flip – a Feira Literária de Paraty – Crumb surpreendeu a todos na entrevista coletiva: disse que viajou meio a contragosto e que só aceitou o convite depois de muita insistência da esposa, a também cartunista Aline Kominsky. 










Robert Crumb mora com a esposa e a filha desde 1991 na França e, neste autoexílio, passa a maior parte do tempo ouvindo discos antigos, lendo e desenhando. Além da dedicação à sua versão do Gênesis, nos últimos anos ele também vem produzindo projetos por encomenda e histórias curtas para jornais e revistas, incluindo a “The New Yorker” e a “W”, especializada em moda e comportamento.

Para a “W”, uma das criações recentes de Crumb foi a retrospectiva em capítulos sobre a trajetória feminina através dos séculos, seguindo das agruras das mulheres no tempo das cavernas até maquinações mais atuais e espúrias de personagens estranhos como Lyndee England, aquela militar norte-americana que, em 2003, foi fotografada torturando prisioneiros no Iraque. Crumb e seu humor são implacáveis.






 

Literatura, jazz e rock'n'roll



Jazz, blues, rock'n'roll e altas literaturas permeiam cada quadro na narrativa de “Minha Vida”, entre passagens de estilo gráfico surpreendente, breves, inconformistas. O mundo característico de Crumb e sua bizarria fornecem o fio condutor a cada traço em fragmento confessional, intercalados por poucas páginas de textos, algum trecho de entrevista e uma ou outra anotação circunstancial.

A síntese da contracultura passa pelo imaginário que Crumb retrata nos quadrinhos. Em “Minha Vida”, esta síntese inclui a infância católica em subúrbios protestantes na Philadelphia (onde ele nasceu, em 30 de agosto de 1943), a escola sempre repressora, a família substituída na adolescência pelas experiências quando foi morar com o irmão mais velho (que o levariam em definitivo ao mundo da música, da libido à flor da pele e da psicodelia), os primeiros desenhos publicados, os hippies de San Francisco, os esoterismos e as manias de estrelas do pop-rock.















Enquanto “Minha Vida” carrega saborosas confidências autobiográficas, as mais antológicas lendas do blues, do jazz, do rock'n'roll e das origens da música popular na América do Norte estão reunidas em “Blues”, outra obra-prima do cartunista que ganhou da Editora Conrad uma edição das mais caprichadas. Detalhe: de acordo com o próprio Crumb, a versão brasileira é melhor e mais completa que a edição original em inglês.

Com bela encadernação em capa dura e colorida, “Blues” inclui – além dos casos mais surpreendentes sobre as origens da música na América, seus personagens principais, as bebedeiras, a vida na zona rural, os cantores cegos, a discriminação racial e os pactos nas encruzilhadas – todas as histórias em HQs, cartuns e tirinhas “musicais” criadas por Crumb, mais as belas capas de disco que ele produziu, as filipetas de culto dos colecionadores, os anúncios publicitários e os cartazes de shows que marcaram época.







No alto, retratos de Crumb, um autorretrato
e uma página inteira extraída do álbum

"Uma breve história da América",
no qual a arte de Crumb traduz a passagem
do tempo, como se fosse uma câmera fixada
no horizonte, registrando as mudanças e
destruições provocadas pelo estúpido modo
de vida do capitalismo selvagem.

Acima e abaixo, i
magens extraídas de "Blues",
álbum que, na edição brasileira, reúne as
lendas
mais antigas do blues, do jazz
e do
rock'n'roll recriadas por Crumb,
incluindo os casos mais surpreendentes
sobre as origens da música popular
na América do Norte, seus personagens
principais e os shows que marcaram época








Crumb é impressionante. Seu traço característico, sujo, algo disforme, com formas grotescas que denunciam a proximidade com o universo das drogas alucinógenas, definem também o que de melhor a cultura underground produziu nas últimas décadas. Como apresenta muito bem o ensaio “Faróis da Eternidade”, de Rosane Pavam, que abre a edição nacional de “Blues”:

Crumb viu o sonho da liberdade nascer e escapar. Assistiu à decretação da morte de tudo – da religião, do cinema, da música, da dança – mas não a desejou. Libertar é diferente de matar, e o trator de Crumb passou sobre as senzalas suave-mente, bem raciocinado”.

Foi na década de 1960 que Crumb surgiu como referência da contracultura, com os baluartes de seus cartuns cáusticos que questionam valores. Sua arte se mantém assim desde aquela época, quando revolução era a palavra de ordem: seus traços de humor negro abalaram tabus, desmascararam falsidades puritanas, revelaram obsessões sexuais e, em “Blues”, reverenciam e criticam a “evolução” da música popular no decorrer do último século.










Janis Joplin e seu amigo Robert Crumb 
o cartunista presenteou Janis com várias
homenagens em quadrinhos, incluindo as
capas e encartes de dois discos antológicos:
I Got Dem ol'Kozmic Blues Again Mama,
de 1969, e Cheap Thrills, de 1968. Abaixo,
um encontro de Janis com Crumb em 1969;
a homenagem de Crumb para Janis em
Blues; o cartum para Robert Johnson,
também em Blues; e dois cartuns da série
The Mind Boggles incluídos em
Mr. Natural (1977) e publicados
no Brasil no final dos anos 1970
pela revista Grilo













De Robert Johnson a Monty Python



Robert Johnson, uma das figuras mais lendárias e enigmáticas da música das primeiras décadas do século 20 está presente em “Blues”, em destaque, assim como Furry Lewis e a galeria dos bluesmen que assombraram os conservadores e criaram os fundamentos do rock e da cultura negra dos EUA que depois se espalharam pelo mundo. Howlin'Wolf e seus pares também são retratados, com Jimi Hendrix que alucina e leva junto a sacerdotisa do rock, miss Janis Joplin. Ela ganharia do amigo Crumb várias homenagem em cartuns e quadrinhos e duas capas antológicas: “I Got Dem ol'Kozmic Blues Again Mama” (1969) e “Cheap Thrills” (1968).

Aclamado como gênio e revolucionário, Crumb nasceu em uma família de cinco irmãos na Philadelphia e começou a desenhar ainda na primeira infância. No documentário dirigido por Terry Zwigoff, ele confessa que o motivo da estreia nas HQs aconteceu por insistência do irmão mais velho, Charles, que também o iniciou em certos hábitos bizarros envolvendo sexo, mulheres, política, drogas, literatura e muita música.






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O hobby dos cartuns virou ganha-pão em 1962, quando Crumb se tornou ilustrador da “American Greetings” e da “Help”. Depois viriam os contratos que alcançaram maior público com a revista “Mad”, outros projetos os mais diversos em áreas idem e, claro, as charges e as HQs mais marcantes da contracultura em todo o planeta. Até o final dos anos 1960, a arte de Crumb estaria restrita ao universo da contracultura, do blues e do rock. Mas isso começou a mudar quando ele lançou “Fritz, the Cat”.

Nesta série, as histórias se passam numa grande cidade habitada por animais antropomórficos, sendo que o gato Fritz é o personagem principal. Muito calmo, entregue à preguiça e ao lado mais hedonista da vida, com algumas tendências artísticas, Fritz sempre se vê envolvido pelo acaso com personagens alucinantes em aventuras selvagens, nas quais vai encontrando as mais diversas experiências sexuais.








Fritz apareceu em histórias desenhadas por Crumb quando criança e viria a se tornar o mais famoso dos seus personagens. As tiras e cartuns com o gato primeiro foram publicadas nas revistas “Help!”, “Cavalier” e “Mad”, mas como elas foram se tornando cada vez mais explícitas, Crumb teve que migrar com seu personagem para revistas mais undergrounds. Depois chegaram com sucesso às eróticas “Playboy” e “Hustler”, nas décadas de 1960 e 1970.

Em 1972, o ponto alto da popularidade: “Fritz, the Cat” foi transformado em filme de animação pelo diretor e roteirista Ralph Bakshi. Com a venda dos direitos sobre seu personagem, Crumb conquistou fama e fortuna e também mais perseguição pela censura. “Fritz” foi o primeiro desenho animado a ser classificado com o código X (impróprio para menores), mas também é considerado um dos filmes independentes de maior sucesso comercial de todos os tempos.

O sucesso e o escândalo de “Fritz, the Cat” ainda ganhariam um capítulo inesperado no final de 1972, quando Crumb publicou uma história que pôs fim à trajetória de seu personagem mais famoso: depois de uma última orgia, Fritz é assassinado por uma ex-namorada. Com Crumb é sempre assim: o banal, o comum, o imprevisível e o humor insano de pequenas bobagens cotidianas fornecem um arsenal de piadas visuais com ares libertários.








Reconhecido como influência ou guru de grandes nomes da cultura pop, Crumb tem legiões de pupilos notáveis. Entre eles, astros e estrelas do rock, do blues e do jazz, jornalistas, escritores e midas da tecnologia como Steve Jobs e Bill Gates, além de Harvey Kurtzman, criador e editor da revista “Mad”, e Terry Gilliam, um dos mentores do grupo de comediantes ingleses do lendário Monty Python. Não é pouco.

Líder mundial do movimento underground, entretanto, é um título que Crumb sempre rejeitou. Prefere ser líder de coisa nenhuma, em suas investidas contra o moralismo e as hipocrisias que encontramos aqui e ali. Alguém já disse, não me lembro quem: ao ler Crumb, é o sol que finalmente brilha em nossa porta dos fundos.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Estilo Crumb. In: Blog Semióticas, 15 de maio de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/05/estilo-crumb.html (acessado em .../.../...).



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